Eduardo Sodré Farias

O EGITO DOS PRIMEIROS FARAÓS: UM TESTEMUNHO DO CEMITÉRIO DE UMM EL-QAAB


A arquitetura monumental no Egito Antigo era uma demonstração da prosperidade econômica, da capacidade de organização e mobilização social e do poder faraônico. Mas, para além disso, a linguagem arquitetônica foi a forma de expressão utilizada para materializar toda uma tradição cultural, especialmente a religiosa. Ao longo das duas primeiras dinastias faraônicas [c. 2900-2590±25 AEC], a tradição cultural não foi estática, variando conforme as oscilações sociais, políticas, econômicas e religiosas, interligadas entre si. Todas essas mudanças foram captadas e exteriorizadas pela linguagem arquitetônica.

Para compreender os elementos da arquitetura faraônica abordados neste estudo, é importante introduzir a concepção egípcia sobre a criação do universo, a vida após a morte e o papel desempenhado pelo faraó, em vida e no além. É necessário destacar que a religião permeava todos os aspectos da vida egípcia, desempenhando um papel político e econômico, além do espiritual [IKRAM, 2018, p. 116].

No Egito Antigo, é possível encontrar diferentes mitos sobre a criação do universo, desenvolvidos em diferentes localidades. De acordo com Rosalie David [2002, p. 81], as principais versões da cosmogonia egípcia são consideradas variantes de um conceito único. Antes da criação, teria havido somente a escuridão total e as águas infinitas do Oceano Primordial. De suas águas, teria emergido uma porção de terra, o Monte Primordial, do qual brotou o deus criador. A partir de então, o deus criador teria gerado o universo e todas as formas de vida existentes, sejam divinas ou terrenas.

Para Maria Thereza David João [2013, p. 81], o pensamento religioso egípcio: “é bastante pautado na observação da natureza, a exemplo dos movimentos cíclicos diários – como o nascer e o pôr do sol – e dos movimentos sazonais, como as cheias do Rio Nilo”. Assim, o aparecimento do Monte Primordial: “em muito alude ao fenômeno das cheias do Nilo já que, após baixarem as águas, as terras ‘emergiam’, simbolizando a fertilidade e a regeneração.” [JOÃO, 2013, p. 83].

Os antigos egípcios acreditavam em um mundo após a morte, no qual as condições de vida seriam melhores do que no mundo terreno. Contudo, a vida do faraó, no além, seria distinta da dos demais egípcios, devido à sua natureza divina. Mesmo após sua morte, o faraó deveria exercer suas funções de intermediário entre os deuses e os humanos e de mantenedor do equilíbrio cósmico, razão pela qual se empenhava, em vida, em prover sua futura existência com uma tumba monumental. Conforme Jaromír Málek: “era, portanto, do interesse de todos proteger a posição e o status do rei após sua morte, tanto quanto em sua vida. Nesse período da história egípcia, monumentalidade era uma importante forma de expressão de tal conceito.” [MÁLEK, 2003, p. 92-93, tradução nossa].

Os aspectos religiosos da vida no Egito Antigo estavam intrinsicamente ligados aos aspectos sociais, políticos e econômicos, não sendo possível dissociá-los, como ocorre na vida moderna. Dessa forma, os monumentos funerários dos faraós também refletiam esses aspectos. Por exemplo, o tamanho de um complexo funerário ou a quantidade dos bens depositados em suas câmaras poderia expressar a abundância, ou a escassez, de recursos econômicos, bem como a força, ou a fraqueza, do poder central do faraó. Em relação ao período estudado neste artigo, há uma carência de evidências arqueológicas, devendo-se contar mais com a arquitetura e com raras fontes escritas para se identificar as mudanças ocorridas nesse período [BÁRTA, 2019, p.49].

No momento inicial do Estado egípcio unificado, as tradições funerárias reais vinham das tradições existentes no Alto Egito desde o Período Pré-dinástico. O local escolhido para o sepultamento dos oito faraós da Primeira Dinastia, o cemitério real de Umm el-Qaab [ver Figura 1], em Abidos, também era o local de repouso dos governantes pré-dinásticos da região de Tinis, uma das mais importantes cidades do Alto Egito, de onde se acredita terem se originados os faraós desse período. Por essa razão, o Período Arcaico, que abarca as duas primeiras dinastias, também é conhecido, na historiografia, como Período Tinita. A tumba do primeiro faraó do Egito, Narmer, é bem simples e pequena, mas, a partir da de seu sucessor, Hor-Aha, houve um crescente avanço em sua elaboração [WILKINSON, 1999, p. 70]. Esse desenvolvimento parece refletir uma maior segurança política e econômica trazida pela consolidação do Estado egípcio, por Narmer.

 

Figura 1 – Cemitério real de Umm el-Qaab [LEHNER, 1997, p. 75].

 

De uma forma geral, os complexos funerários dos primeiros faraós eram compostos de duas estruturas principais, separadas geograficamente por uma curta distância, a tumba e o pátio funerário. A tumba tinha um formato retangular, localizada no deserto adjacente às plantações, e era considerada uma representação do interior do palácio real, servindo de moradia para o espírito do faraó, por toda a eternidade. O pátio, também retangular, ocupava uma área ampla cercada por muros altos com nichos que simulavam as fachadas dos palácios reais, e localizava-se mais próximo da área cultivada. Ele pode ter servido para a celebração das cerimônias funerárias ou como local do culto mortuário do faraó [WILKINSON, 1999, p. 231].

As tumbas eram construídas em três etapas, com dois níveis distintos, um subterrâneo e uma superestrutura acima do solo [ver Figura 2]. Na primeira etapa, cavava-se um poço retangular de grandes dimensões, inclusive em profundidade. Esse poço era então dividido em câmaras por paredes de tijolos de barro. Normalmente, no centro do poço, ficava a maior das câmaras, onde seria depositado o sarcófago do faraó. Ao seu redor, ficavam as câmaras que representavam diferentes cômodos do palácio e que serviriam para o depósito dos provimentos que sustentariam a vida no além. Convém ressaltar que o conteúdo das tumbas reais desse período foi saqueado, provavelmente, ainda na antiguidade, restando uma pequena fração do que foi originalmente depositado para a vida eterna dos faraós.

Na segunda etapa, o poço era coberto com areia e cascalho, formando-se um monte sobre ele. Para Badawy: “parece provável que a forma dos montes funerários lembrava simbolicamente o monte primordial que emergiu das águas do caos no momento da criação” [BADAWY, 1956, p. 183 apud WILKINSON, 1999, p. 256, tradução nossa]. Assim, sugere-se que esse monte não possuía apenas a função prática de proteger ou esconder o sarcófago e todos os objetos funerários, mas também a função simbólica de aludir ao Monte Primordial, garantindo o renascimento do faraó no outro mundo. Nas primeiras tumbas reais da dinastia, essa etapa foi executada após o sepultamento do faraó, uma vez que o único acesso ao poço era por cima.

A terceira e última etapa consistia em recobrir o monte mencionado com um segundo, ainda maior, formando uma superestrutura retangular conhecida como mastaba, palavra árabe para um pequeno banco de barro que passou a designar as tumbas egípcias, devido à sua aparência. De acordo com Toby Wilkinson: “apesar de as mastabas contemporâneas, ao norte de Saqqara, enfatizarem as superestruturas, as tumbas reais da Primeira Dinastia, em Abidos, parecem ter se concentrado no elemento subterrâneo” [WILKINSON, 1999, p. 233, tradução nossa]. É provável que a aparência das tumbas reais da Primeira Dinastia tenha sido a de um simples monte de areia [WILKINSON, 1999, p. 233] [ver Figura 2]. Infelizmente, nenhuma superestrutura das tumbas dos faraós da Primeira Dinastia sobreviveu às intempéries do tempo e às ações humanas.

 

Figura 2 – Tumba de Djet, da 1.ª Dinastia [LEHNER, 1997, p. 76].

 

Externamente às câmaras já mencionadas, havia ainda câmaras subsidiárias que podem ter sido utilizadas para o sepultamento de uma comitiva real, talvez com parentes próximos e, como sugerem as evidências arqueológicas, servos sacrificados para acompanhar seus soberanos, demonstrando o poder da divindade real.

Ao lado da tumba do segundo faraó da dinastia, Hor-Aha, havia 36 dessas câmaras subsidiárias, e, por ordem de sucessão no trono, foram encontradas 318 na de Djer, 174 na de Djet, 130 na de Den, 64 na de Anedjib, 68 na de Semerkhet e 26 na de Qaa [BÁRTA, 2019, p. 64]. No caso dos dois últimos faraós, as evidências sugerem que as câmaras subsidiárias foram cobertas pela mesma superestrutura da tumba real, sendo a primeira evidência concreta da prática de sacrifício humano, descontinuada com o fim da dinastia. Cabe ressaltar que Merneith, cuja tumba se encontra em Umm el-Qaab, foi a mãe do faraó Den e governou o Egito como regente, nos primeiros anos do reinado desse faraó, conquistando assim o privilégio de ter sua própria tumba no cemitério real.

Um aspecto importante da arquitetura das tumbas reais da Primeira Dinastia diz respeito à sua orientação. A sudoeste do cemitério real, um desfiladeiro é formado pela bifurcação de um penhasco, tomando a forma de um “V”. Para os antigos egípcios, esse desfiladeiro pode ter sido visto como uma passagem para o além [LEHNER, 1997, p. 75]. Por essa razão, no lado sudoeste das tumbas reais, foi deixada uma lacuna entre as câmaras subsidiárias com o intuito de permitir a livre passagem do espírito do faraó de seu sarcófago para o além, através do desfiladeiro [WILKINSON, 1999, p. 256].

As primeiras mudanças significativas na arquitetura das tumbas aconteceram no reinado de Den, quinto faraó da Primeira Dinastia. Em sua tumba, foram utilizados blocos de granito no chão da câmara funerária real, sendo o primeiro registro do uso desse tipo de material. Além disso, foi incorporada uma escadaria que dava acesso às câmaras subterrâneas. A partir de então, não seria mais necessário esperar o falecimento do faraó para a conclusão da obra. A escadaria foi orientada para o leste, talvez alinhada com o sol nascente, um poderoso símbolo de renascimento [WILKINSON, 1999, p. 257]. Essa alteração pode não ter sido apenas arquitetônica. Talvez, para aquele faraó, seu espírito necessitaria de uma passagem livre para retornar ao corpo, com o nascer do sol. Os dois sucessores de Den, Anedjib e Semerkhet, também incorporaram, em suas tumbas, passagens orientadas para o leste [ver Figura 1].

Outra inovação arquitetônica que pode ter representado uma nova concepção da vida após a morte ocorreu no reinado de Qaa, oitavo e último faraó da Primeira Dinastia. Em sua tumba, o acesso às câmaras subterrâneas passou a ser orientada para o norte [ver Figura 1]. Esse alinhamento poderia estar relacionado às estrelas circumpolares e a uma nova concepção de que elas seriam os espíritos dos faraós falecidos, antecipando a orientação das tumbas da Segunda Dinastia e dos complexos funerários da Terceira Dinastia [WILKINSON, 1999, p. 257]. Para esse autor: “é tentador especular que a arquitetura da tumba de Qaa tem um significado similar, indicando que a crença em um pós-vida astral para o rei já era comum no final da Primeira Dinastia.” [WILKINSON, 1999, p. 257, tradução nossa].

Quanto aos pátios funerários reais da Primeira Dinastia, não foram identificadas estruturas em seu interior, mas é possível que tenham sido construídas com materiais perecíveis [ver Figura 3]. Assim como as tumbas, os pátios funerários também foram cercados por câmaras subsidiárias, talvez para o sepultamento de parentes ou oficiais.

Além dos oito faraós e de uma rainha da Primeira Dinastia, dois faraós da dinastia seguinte também foram sepultados em Umm el-Qaab [ver Figura 1]. Sobre a Segunda Dinastia, sabe-se muito pouco. Pelas evidências arqueológicas, acredita-se que tenha sido um período de grande instabilidade política que culminou em uma guerra civil e na divisão do território egípcio. Possivelmente, o início da instabilidade levou os primeiros faraós dessa dinastia a construírem suas tumbas em Saqqara, cemitério que servia à capital Mênfis, localizada na entrada do Delta do Nilo e próxima ao Baixo Egito, em vez de na tradicional Abidos, no Alto Egito.

Peribsen, sexto faraó da Segunda Dinastia, retornou ao cemitério real de Umm el-Qaab para a construção de sua tumba. O motivo de ter construído seu complexo funerário em Abidos, no Alto Egito, pode ter sido por seu reinado ter se limitado apenas à parte sul do Egito, enquanto este se encontrava dividido [BÁRTA, 2019, p.67; WILKINSON, 1999, p. 89]. Além disso, o tamanho e a simplicidade de sua tumba podem sugerir as dificuldades enfrentadas em seu reinado. Apesar das semelhanças com a Primeira Dinastia, em sua tumba não há câmaras subsidiárias.

Com base nos achados arqueológicos, acredita-se que a reunificação política só tenha ocorrido no reinado de Khasekhemwy, sétimo e último faraó da dinastia [IKRAM, 2018, p. 79]. Para Toby Wilkinson [1999, p. 94], seu reinado foi um ponto de virada na história egípcia, tornando possíveis as grandes realizações de seus sucessores. Seu complexo mortuário foi construído também em Abidos e, assim como os de seus antecessores, consistia na tumba real e no pátio funerário, separados por uma curta distância. No entanto, sua monumentalidade supera, e muito, a de todas as construções anteriores nesse local. Sua tumba apresenta um desenho diferenciado [ver Figura 1], com um poço extremamente comprido, dividido para se parecer com uma galeria escavada na rocha, a exemplo das tumbas reais construídas em Saqqara, e sua câmara funerária foi totalmente revestida de pedra calcária. Em seu entorno, também não são encontradas câmaras subsidiárias.

A grande inovação, contudo, se deu em seu pátio funerário. Assim como a de Peribsen, seu interior não estava mais vazio [ver Figura 3]. Na entrada do canto sudeste, no lado de dentro, foi construída uma pequena edificação, talvez com o intuito de abrigar uma estátua do faraó ou oferendas [LEHNER, 1997, p. 77], ou para abrigar o corpo do faraó falecido ou seu sucessor durante os preparativos funerários [WILKINSON, 1999, p. 238]. Além disso, escavações arqueológicas revelaram uma pilha de tijolos praticamente no centro do pátio. Ao reconstruir essa pilha, o arqueólogo responsável pelas escavações, David O´Connor, chegou a um monte maciço, com lados inclinados, o qual apelidou de “proto-pirâmide”. Os elementos arquitetônicos do pátio funerário de Khasekhemwy podem ser considerados precursores da próxima construção monumental, o complexo funerário da Pirâmide de Degraus [LEHNER, 1997, p. 77; WILKINSON, 1999, p. 23].

 

Figura 3 – Pátios funerários em Abidos [LEHNER, 1997, p. 77].

 

Os pátios funerários desses dois últimos faraós da Segunda Dinastia também não estão cercados por sepultamentos de membros da família ou oficiais. Contudo, um achado arqueológico interessante, ao lado do pátio de Khasekhemwy, foi uma série de poços com uma frota de barcos funerários [ver Figura 3], a exemplo dos que foram enterrados na Grande Pirâmide de Gizé, na Quarta Dinastia. Não se sabe ao certo se essa frota pertenceu a Khasekhemwy ou a algum faraó anterior nem seu real propósito, mas uma das hipóteses é de que não tenha sido apenas utilizada no cortejo fúnebre, e sim estivesse já relacionada a um incipiente culto celeste, necessária para a jornada do faraó no ciclo cósmico [WILKINSON, 1999, p. 257].

Longe de terem sido um período estático, as primeiras dinastias do Estado egípcio faraônico vivenciaram uma série de transformações que foram refletidas nas construções monumentais. As mudanças e as permanências desse período podem ser enxergadas pelo estudo da arquitetura monumental funerária. A principal permanência a ser mencionada é o caráter divino da realeza, que foi capaz de mobilizar uma quantidade extraordinária de recursos materiais e humanos para o principal projeto do reinado de um faraó, seu complexo funerário. Em relação às mudanças, a dificuldade de uma compreensão mais profunda se deve à escassez das evidências que chegaram aos tempos atuais.

Contudo, inicialmente, deve-se ter em mente o contexto vivido por aqueles que iniciaram o período dinástico. Não se sabe quanto tempo Narmer levou para unificar o Alto e o Baixo Egito, nem o tempo restante que pôde dedicar a seus projetos de afirmação de poder, inclusive sua própria tumba. Talvez, ele tenha preferido dedicar mais recursos para a construção de uma nova capital, Mênfis, de onde seria mais fácil manter o país unido, tendo em vista a simplicidade de sua tumba, em Umm el-Qaab.

Com o Estado unificado, o que se observa é um crescente desenvolvimento cultural e tecnológico, acompanhado, proporcionalmente, pela afirmação do poder do faraó, refletidos nos monumentos funerários cada vez maiores e mais complexos, como atestado pelas tumbas de Hor-Aha até Den. É possível deduzir que, com a estabilidade política e econômica, os egípcios desse período puderam se dedicar a diversas atividades, aprimorando suas capacidades técnicas, artísticas e administrativas e desenvolvendo novas concepções para a vida em sociedade e, talvez, até mesmo para a religião.

Talvez, as mudanças na sociedade e na religião tenham começado a ser mais sentidas no reinado de Qaa, uma vez que, mesmo com um longo reinado, sua tumba aparenta ser mais modesta em comparação com a de faraós anteriores, além de apresentar a primeira alteração efetiva atribuída às crenças religiosas, o acesso ao interior da tumba orientado para o norte.

Peribsen, sexto faraó da Segunda Dinastia, empregou, em sua tumba, as mesmas características da Primeira Dinastia, inclusive a lacuna no lado sudoeste, pressupondo, também, um retorno às crenças religiosas daquele período. Contudo, nem sua tumba nem seu pátio funerário estavam cercados por câmaras subsidiárias de outros enterramentos. Talvez, isso seja indício de mudanças sociais e religiosas, no qual o solo sagrado do cemitério real passou a ser de exclusividade do faraó. Essa prática foi adotada até o fim da Terceira Dinastia.

Não se sabe qual a relação entre Khasekhemwy, restaurador do Estado egípcio, e seu antecessor. Contudo, pode ter sido de certa proximidade, uma vez que sua tumba também está em Umm el-Qaab, e seu pátio funerário foi construído ao lado do de Peribsen, nos mesmos moldes, até mesmo com a estrutura permanente, no canto sudeste, provavelmente com o mesmo propósito. Entretanto, o reinado de Khasekhemwy não foi apenas uma continuação do anterior. A razão de seu complexo funerário estar em Abidos pode ter sido pelo fato de sua construção ter se iniciado antes da reunificação. Além disso, o formato alongado de sua tumba poderia indicar uma intenção de mesclar as arquiteturas e as crenças da Primeira e da Segunda Dinastias, visto que o acesso é orientado para o norte. Após a reunificação, esse faraó alterou seu nome para ostentar as figuras tanto de Hórus quanto de Seth, afirmando sua condição de pacificador do Alto e do Baixo Egito, talvez com implicações sociais, políticas, econômicas e religiosas. Entre elas, a “proto-pirâmide” é uma evidente inovação arquitetônica, ou mesmo nas práticas religiosas, apesar de seu propósito ainda ser desconhecido.

 

Referências

Eduardo Sodré Farias é bacharel em Cinema, pela Universidade de Brasília, bacharelando em História, pelo Centro Universitário Internacional UNINTER, e pós-graduando em História Antiga e Medieval, pela ITECNE.

 

BÁRTA, Miroslav. Analyzing collapse: the rise and fall of the Old Kingdom. Cairo: The American University in Cairo Press, 2019.

DAVID, Rosalie. Religion and magic in Ancient Egypt. London: Penguin Books, 2002.

IKRAM, Salima. Ancient Egypt: an introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.

JOÃO, Maria Thereza David. Tópicos de história antiga oriental. Curitiba: InterSaberes, 2013.

LEHNER, Mark. The complete pyramids. New York: Thames and Hudson, 1997.

MÁLEK, Jaromír. The Old Kingdom [c. 2686-2160 BC]. In SHAW, Ian [Ed.]. The Oxford history of Ancient Egypt. New Edition. New York: Oxford University Press, 2003.

WILKINSON, Toby A. H. Early dynastic Egypt. Abingdom: Routledge, 1999.

20 comentários:

  1. Parabéns Eduardo, pelo artigo, proporciona ótima leitura.
    Considerando que no Egito Antigo a religião permeava todos os aspectos da vida, como na esfera econômica e política, como afirma Ikram (2018, p. 116) e o faraó era a expressão máxima desse poder, ser humano que representava as divindades no reino; será que é possível perceber se havia na mentalidade dos egípcios de que o corpo do faraó tinha um caráter duplo – humano e divino – como se percebe, por exemplo, durante a Idade Média quando se afirmava “os dois corpos do rei” para designar seu caráter mortal e imortal, singularidade contida apenas nele?
    Obrigada, Talita Seniuk.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bom dia, Talita! Muito obrigado pela participação e por sua ótima pergunta, e fico muito feliz que tenha gostado do texto! Pelos meus estudos (claro que ainda tenho muito caminho pela frente), pude notar que, na maior parte do transcorrer da história egípcia, o faraó era visto exatamente com esse caráter duplo. Ele ainda era visto como humano, mortal, mas o único capaz de ser o elo com o mundo divino, pois, ao ser coroado, se tornava uma espécie de "encarnação" do deus Hórus. Em alguns momentos, em especial na segunda metade do Reino Antigo, ele era referenciado como "o Bom Deus" ou "o Grande Deus", mas não era considerado um deus em si. Com relação específica ao corpo físico do faraó, talvez tenha sido mais evidente no reinado de Akhenaton, quando, aí sim, ele se considerou uma divindade, formando uma tríade com o deus Aton e a rainha Nefertiti. Quando participava das procissões, em sua capital Akhetaton, a família real não tocava o chão, por se considerar sagrada demais para pisar o solo terreno. Apesar de nunca ter achado algum texto específico sobre o tratamento dado ao faraó em vida, eu acredito que havia algum tratamento diferenciado, não só por ser o líder máximo do povo, mas por conta de sua própria natureza divina. Não sei se consegui responder a sua pergunta, mas esse é um tema bem bacana para você continuar estudando. Muito obrigado novamente!

      Excluir
    2. Obrigada, Eduardo!
      Respondeu sim!
      O tema é fascinante mesmo e merece horas de dedicação!
      Tudo de bom!
      Talita Seniuk

      Excluir
  2. Olá, Eduardo.

    Parabéns pelo texto, o assunto e a forma como você o desenvolve puxam o leitor até o final, numa leitura muito interessante e fluída!

    Quando Wilkinson (1999, p. 233) afirma que enquanto as mastabas contemporâneas enaltecem as superestruturas (acima da terra), as tumbas da Primeira Dinastia concentram-se nesse formato mas, no espaço subterrâneo; será que é possível levantar a hipótese de que os primeiros faraós, da Primeira Dinastia, preocupavam-se mais com a funcionalidade delas no pós vida, enquanto aqueles que vieram depois se ocuparam em torna-las imponentes “acima do solo” para ostentar antes de mais nada um prestígio ainda em vida, deslocando um pouco o significado religioso dessas construções para uma afirmação de poder frente aos demais?

    Obrigado, Junior Pleis.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa tarde, Junior! Muito obrigado pelo comentário, e que bom que gostou do artigo! Obrigado também pela pergunta bastante pertinente! Apesar de o texto ter ficado dúbio, a comparação que Wilkinson faz é entre as mastabas da elite e as dos faraós, ambas da Primeira Dinastia. As mastabas dos faraós, que infelizmente não sobreviveram, também devem ter sido muito elaboradas. Entretanto, segundo a crença egípcia da época, o pós vida do faraó seria diferente do de qualquer outra pessoa. Certamente que, para continuar sua existência no além, o faraó precisaria de toda a estrutura e bens que possuía quando vivo, justificando o desenvolvimento do subterrâneo da tumba, que deveria representar um palácio real para que seu Ka (um dos elementos constitutivos do indivíduo) pudesse continuar existindo na tumba. Já a superestrutura da tumba real não precisaria ser tão elaborada internamente, visto que seu culto funerário seria realizado em outro local, provavelmente em seu pátio funerário. Quanto à elite, nesse início de período dinástico, a crença no pós vida seria bem diferente. Inclusive, cheguei a ler que, inicialmente, a vida eterna seria apenas para o faraó (BRIER, Bob; HOBBS, Hoyt. Ancient Egypt: Everyday Life in the Land of the Nile. New York: Sterling, 2013, p. 54). De toda forma, sendo essa informação correta ou não, o fato é que a elite construía a mastaba com alguma arquitetura interna, com espaço para acomodar seus pertences (em quantidade bem menor do que um faraó) e também para a oferta de oferendas. No futuro, o pequeno espaço para oferendas se tornou a capela das tumbas da elite, onde os familiares realizavam o culto funerário para o falecido. Em relação à magnitude das mastabas, eu concordo com sua impressão, de que seria para demonstrar seu prestígio junto ao faraó, até porque essas mastabas seriam construídas com a autorização e, talvez, apoio dos próprios faraós. Mas ainda assim, acredito que não seja possível descaracterizar o aspecto religioso, uma vez que esse permeava todos os outros da vida no Egito Antigo. De acordo com o livro mencionado acima, uma maneira de a elite atingir o pós vida seria recebendo a benesse de acompanhar o faraó. Ou seja, talvez seja uma das razões da existência dessas mastabas. Espero ter respondido. Muito obrigado!

      Excluir
    2. Olá, Eduardo!
      Obrigado pela resposta!
      Junior Pleis.

      Excluir
  3. Quando vamos a uma cidade s primeiras fortificações já existentes são de uma igreja e uma prefeitura. Essas construções realça uma frase que ouço desde criança obra faraônica. Isso tem alguma ligação com o Egito, uma vez que os povos da Antiguidade traçavam contatos entre si?

    Diêgo Luiz Góes Santos Menezes

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa tarde, Diêgo! Muito obrigado pelo interesse no artigo e pela pergunta! Eu não conheço exatamente a origem da expressão “obra faraônica”, mas sem dúvida vem do deslumbramento que os visitantes tiveram com as obras gigantescas que existem no Egito desde o período dos faraós. Hoje, ainda podemos nos impressionar com o tamanho das pirâmides e dos templos. Os palácios dos faraós deveriam ser bem grandes também, contudo não eram construídos em pedra, mas com tijolos de barro. Os palácios, os prédios públicos e as casas não eram feitas de pedra. As únicas construções que foram feitas para durar, ou seja, em pedra, foram as relativas ao contexto religioso (tumbas e templos), pois deveriam durar pela eternidade. Não sei se consegui responder ao que você queria, mas fique a vontade para perguntar novamente. Muito obrigado!

      Excluir
    2. Obrigado.

      A mão de obra era a servidão coletiva? No caso havia poucos escravos, e o trabalho era voluntário? Foram os hicsos que levaram a escravidão em larga escala? Pois ao meu ver se o trabalho fosse forçado, poderia se ter revoltas.

      Diêgo Luiz Góes Santos Menezes

      Excluir
    3. Diêgo, em se tratando da história do Egito, temos de tomar muito cuidado com os conceitos de servidão e de escravidão. Temos de ter em mente que a servidão se aplica mais ao contexto da Idade Média, e a escravidão, na Antiguidade, era diferente da escravidão moderna, da que existiu no Brasil, por exemplo. Dito isso, posso citar o exemplo da construção das pirâmides, até mesmo porque costuma ser difundido que o trabalho foi realizado por escravos. As pirâmides foram construídas por trabalhadores egípcios, muitos deles da classe de artesãos especialistas em suas funções, com a ajuda dos camponeses. Estes últimos prestavam a corveia, no período das cheias do Nilo, em que era impossível o trabalho nas plantações. Em linhas gerais, a corveia era um trabalho obrigatório que os camponeses prestavam ao faraó, já que não poderiam pagar seus impostos por meio dos produtos agrícolas. E todos os trabalhadores eram remunerados com o pagamento da época, ou seja, alimentos e vestimentas. Além disso, devemos considerar outro aspecto quando as pessoas prestavam a corveia para a construção das pirâmides e dos templos. Certamente, eles tinham a crença de que estavam contribuindo para a manutenção do equilíbrio cósmico (Maat). Em relação aos Hicsos, eu realmente não tenho muito conhecimento sobre o período, mas posso dizer que, atualmente, já se tem o entendimento de que não houve uma invasão hicsa, mas uma migração ao longo de um período bem grande. Também não sei se levaram a escravidão em larga escala, pois uma grande quantidade de prisioneiros de guerra já era levada como escravos desde muito tempo antes. Mais uma vez obrigado pelo interesse!

      Excluir
  4. Mas não seria o modelo asiático de produção, hoje conhecida como modelo de servidão coletiva? Diferente clarO do feudalismo, pois havia no faraó o próprio Deus.

    Diêgo Luiz Góes Santos Menezes

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Diêgo, a teoria do modo de produção asiático ainda é utilizada, mas já sem tem uma discussão e novas proposições sobre o tema. No livro da profa. Maria Thereza David João que referencio, ela apresenta uma visão geral sobre essa discussão entre as páginas 46 e 54. Ressalto ainda que, atualmente, no estudo da História de determinada sociedade, temos de ter muito cuidado com as generalizações e devemos nos preocupar com as especificidades de cada sociedade antiga.

      Excluir
    2. Obrigado, Eduardo irei comprar o PDF.

      Diêgo Luiz Góes Santos Menezes

      Excluir
  5. Parabéns pelo texto Eduardo Sodré Farias! Além de muito bem escrito, seu tema de pesquisa é muito interessante e inédito nos estudos de Egiptologia aqui no Brasil. Gostaria de fazer uma questão, mais a nível de curiosidade e geral sobre seu tema: com relação às as rainhas, encontramos alguma questão específica sobre elas, com relação à arquitetura funerária e sua função como Esposa Real na sociedade egípcia?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite, Jéssica! Muito obrigado pelo interesse no artigo e pelo seu feedback! Fico muito feliz que tenha gostado! Você levantou um tema excelente que, se eu tiver oportunidade, eu gostaria de aprofundar no futuro. De uma forma geral, o papel das rainhas nas primeiras dinastias não estava no meu escopo, então eu não li nada em específico. Porém, o fato de a tumba da rainha Merneith, esposa de Djet e mãe de Den, quarto e quinto faraós da Dinastia I, estar entre as tumbas dos faraós me chamou a atenção. Normalmente, lemos a respeito de algumas mulheres poderosas nos períodos posteriores da história egípcia, como Hatshepsut, Nefertiti ou Cleópatra. Eu acho incrível que, já no início do período faraônico, em torno de 2900 AEC, houvesse uma figura feminina tão poderosa. Claro que não podemos generalizar a condição de Merneith para todas as rainhas, tanto que não há outra enterrada com tamanha dignidade entre os faraós. Outras rainhas foram encontradas nas pequenas tumbas subsidiárias que cercavam as dos faraós. Isso também não quer dizer que não tivessem exercido uma função importante nos reinados de seus maridos. Infelizmente, desse período, não temos registros escritos com as biografias das pessoas enterradas nas tumbas. Mas, particularmente, eu acredito que o exemplo de Merneith reforça o papel importante que uma rainha e, principalmente, mãe do próximo faraó ocupava na sociedade egípcia desde o princípio, inclusive podendo ficar encarregada da administração estatal. Eu gostaria de ter respondido melhor sua pergunta, mas é um ótimo tema a ser explorado! Muito obrigado novamente!

      Excluir
  6. Parabéns pelo excelente texto!!Descreveu com detalhes a dinastia dos faraós, assim como as curiosidades a respeito da forma como os mesmos eram referenciados pelos súditos, nas tumbas e sarcófagos. Percebemos que ao longo dos tempos, que o ser humano tem muito respeito por seus parentes mortos, os tratando com cuidado e zelo.

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.